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É preciso reencantar o Brasil

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É preciso reencantar o Brasil

A magia do armorial produz nova centelha cinquenta anos depois de seu lançamento, reencontrando um Brasil exaurido mas combativo na afirmação e defesa de suas culturas. É como se diante do esfacelamento das políticas culturais no contexto de achatamento vigente, pudessem ser escutados novos timbres ou ver-se ecoar de regiões distintas um clamor de reencantamento do país. É a resposta da imaginação que tem de vir dos mais diversos lugares.

Esse é o mote do 10o Interculturalidades que celebra os 50 anos do Movimento Armorial, idealizado e propagado por Ariano Suassuna. A intenção do projeto foi engendrar um acontecimento e se voltar para a força de uma experiência que reverbera a partir de suas bordas, pois, armoriais ou não, outras iniciativas se alimentam do procedimento de aproximação e escavação das manifestações culturais, como um manancial para a recriação da arte brasileira.

Se o Armorial se propôs a olhar para dentro do país reconhecendo expressões e sentidos matriciais da cultura brasileira, a tarefa prossegue reclamando atualidade, pois um futuro potente não pode prescindir dos modos de ser e fazer de que somos portadores.

O adoecimento do Brasil é a negação das diferenças e todo esquecimento incondicional é a perda mais drástica das identidades. Não podemos mais ver escoar o país em passa boi e passa boiada, e coitada da rês, já tão mutilada! Não podemos mais perder o mapa que nos permite amar e trilhar o Brasil com sua diversidade.

O Brasil profundo não é esse país que está aí, tocado por essa máquina de apagamento e invisibilidade!

O Armorial envolve aspectos dessa natureza, como o olhar do protagonista Quaderna em “A Pedra do Reino”, revelando-se como um decifrador aparentemente ingênuo, mas sobrecarregado de astúcia para produzir sua leitura de mundo. Em seu esforço epopeico, aprendeu a ler o Brasil na contraposição de visões de seus dois mestres, o bacharel integralista e galego, Samuel, e o filósofo negro comunista Clemente,  o primeiro reforçando o legado das matrizes ibéricas (e flamengas) e o segundo, contrariamente, proclamando a expressão única das matrizes negro-tapuias que forjam as interioridades profundas.

Quaderna, então, em seu perambular, ensaia um esboço de compreensão em que a tarefa interpretativa não se distancia de um esforço de revisão de processos culturais contraditórios ou excludentes, que traçam a história do país, desde as guerras de extermínio das nações indígenas até as epopeias trágicas de Palmares e Canudos. Há nisso tudo, revisão de olhares, sentidos e atitudes.

Para além de um sentido de tradição como algo que se vincula a um tempo passado, sua apropriação pela arte envolve um contínuo retrabalho das expressões. O artista, nesse contexto, é um intérprete que responde criativamente à trama do mundo, reconhecendo histórias, pessoas, acervos simbólicos e um desejo de futuro calcado na vontade de reafirmar os ciclos da vida, uma vontade de beleza como o expressaria em outro contexto, mestre Darcy Ribeiro. Nada, portanto, se fixa aqui a uma imagem cristalizada, mas se associa a um contínuo deslocamento.

Há uma viragem importante demarcada pelo armorial que nos parece muito atual e recorrente. As insígnias e a heráldica que normalmente expressam os signos da nobreza e das elites passam a distinguir a conformação expressiva das artes do povo, nas representações dos Autos, nos folguedos, nas brincadeiras e encenações populares, todas possibilitando a corporificação de uma realeza transfigurada que inverte sua condição social concreta. Trata-se da potência de um armorial humanizado, que encontra bases no concerto de uma vida seguidamente reencenada, como espaço vivo de expressão que supera em muito as abstrações conceituais de âmbito puramente intelectual. Nesse contexto, o transbordar do popular, para além de um recorte que o contém, arremete contra as conformações institucionais da arte.

Em convergência primeira com o folheto de cordel, transborda também como traço do armorial a referência mítica do circo como imagem do mundo. É o circo errante, extraviado e encarnado pelos andarilhos, ciganos e as personagens pícaras, em tudo traduzindo a imagem precária e descosturada das tendas improvisadas, das cavalgadas sertanejas e suas emboscadas, em cortejos e desfiladas em permanente viagem como a escrita e a literatura. É o circo da Onça Malhada de Dom Pantero.

Essa alusão traduz a dimensão mágica da cultura popular na convergência de forças de criação que reverberam como um reencantamento da vida, como a querer reinstaurar as narrativas e mitologias locais, os saberes advindos da experiência, a coexistência entre os seres, a permeabilidade do cotidiano e do sagrado, as heranças vitais e os vínculos comunitários.

Como a arte pode desencadear esses processos amparada na vontade e desejo de sonhar novamente a terra?

É necessário voltar à integralidade das linguagens e acionar uma efetiva força de criação que dialogue com nossas diferenças e contradições. É preciso reestabelecer no território as mitologias que nos embasam, os marcos sagratórios do vir a ser do povo brasileiro, que se conformam nas “ilumiaras”, neologismo de Ariano para dar conta da súmula da cultura de um povo.

Está inscrita nas Pedras, em santuários, a força de reencantamento que rebrilha no mais profundo da epiderme talhada ao sol. Nelas se lê a sabedoria dos narradores ancestrais e a eloquência de uma terra vivida como “altar iluminado” em que a arte se confraterniza com a existência. Uma arqueologia recolocada em outros termos e que aponta para uma origem ainda mais profunda do Brasil, anterior mesmo ao sentido que dele conhecemos, decorrente da ocupação dos interiores e do projeto de extinção dos povos originários, cujos traços, de alguma forma, ressurgem nessa arqueologia poética do armorial.

Coerente com a ideia de um lugar plural (pois este assim o é em sua origem milenar), os corpos encantados das pedras dessa terra, resistindo há tanto tempo às mais variadas agressões, acabam nos ensinando como lidar com a bruta situação adversa.  Sendo força e humildade, as pedras nos recordam as heranças que devemos vigiar, sem nunca esquecê-las.

É para esse reacender de sentidos que nos orientamos como celebração do mistério da vida, das ancestralidades e da abertura do ser brasileiro frente a todo estreitamento que não é outra imagem senão a redução da potência do que aqui se plasmou.

Contra a visão binária, orientada pelo ódio e o ressentimento, é preciso multiplicar as experiências para expressar o que temos de mais vivo e latente – o muito que somos sendo muitos!

Está escrito na Pedra!!!

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