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UFF - Universidade Federal Fluminense

Há quase quarenta anos, a Galeria de Arte UFF foi inaugurada dentro do então Departamento de Difusão Cultural da instituição. Era início da década de 1980; trecho de nossa história que apontaria para a nova constituição e para tudo o que essa vinha representando.

Naquele agosto de 1982, subiu no palco do Teatro da UFF grandes atrações para celebrar a inauguração da nova fase daquele espaço, e entre essas estava o Quinteto Violado, grupo de músicos pernambucanos que estava em turnê para promoção de seu novo disco intitulado ‘Notícias do Brasil’.

A canção-título do álbum é composição de Milton Nascimento e Fernando Brant, e de início já nos diz de qual Brasil viriam as novidades e até onde elas tocariam:

‘’Uma notícia está chegando lá do Maranhão
não deu no rádio, no jornal ou na televisão,
veio no vento que soprava lá no litoral
de Fortaleza, de Recife e de Natal.
A boa nova foi ouvida em Belém, Manaus,
João Pessoa, Teresina e Aracaju
e lá do Norte foi descendo pro Brasil Central
chegou em Minas já bateu bem lá no Sul (…)’’

De um Brasil real, que nos últimos dois séculos acabou generalizado como ‘interior’, chegaria ‘a novidade’ de que ‘o Brasil não é só litoral, é muito mais, é muito mais que qualquer Zona Sul’, como diz a letra da música.

Esse litoral que hoje estima-se já ser habitado há mais de 30 mil anos, foi a entrada para a colonização do território americano, em uma história que ultimamente tem ganhado novas vistas. A invasão através das margens de nosso mar e o que sucedeu aos povos originários, massacrados e expulsos de seus locais de origem ainda repercutem em nosso presente.

Poucas ondas de séculos depois, a chegada via oceano de escravizados africanos acabou transformando o lugar em um campo de trabalho forçado e deixando aberta uma ferida salgada de mar. Entre rios e matas abertas, veio o sertão sem fim e a formação de povoados através da passagem de gente.

Dos ciclos econômicos da colônia à formação das cidades nas últimas décadas, foram os pés das trabalhadoras e trabalhadores que riscavam no mapa novas margens diante as possibilidades nos locais que cabiam sobreviver e tirarem o sustento, sempre andando. E assim fizeram-nos ribeirinhos e marginalizados, palafitas e comunidades inteiras, periferias, casas de beira de estradas, ceilândias, marés e capãos, que não cabiam em planos-pilotos nem nos centros das capitais.

Esta exposição parte do litoral como primeiro ambiente a produzir as margens de um país cheio delas, segue pelos estreitos de dentro do país até avistar algum horizonte possível, no alto de alguma laje construída pelos próprios moradores.

 

 

 

 

Cobra Canoa da Transformação
Infogravura
2017

 

 

 

Capa do disco Canções Praieiras de Dorival Caymmi

Capa do livro Capitães de Areia de Jorge Amado

 

 

 

Morena do Mar. Composição de Dorival Caymmi.

 

 

 

Vídeo da Agência Nacional mostrando a chegada ao Rio de Janeiro de cinco jangadeiros a bordo da jangada Nossa Senhora da Assunção, que partiram de Fortaleza e foram recebidos pela população carioca na Praia de Copacabana. Cinejornal Informativo v. 2 n. 51, 1951. Fundo Agência Nacional.

 

 

 

 

Chão que sobe rios
Escarificação de argila tabatinga sobre parede

 

 

 

 

Situação de encontro
6 toneladas de areia e vidro, dimensões variáveis

 

 

 

 

Vaca
Pintura, óleo sobre tela

 

 

 

UNESCO: Representative List of the Intangible Cultural Heritage of Humanity – 2019
Bruno Saphira Ferreira Andrade

 

 

 

 

 

Capa do disco O Nordeste na voz de Luiz Gonzaga

 

 

Capa do disco Notícias do Brasil do Quinteto Violado

 

 

 

Sem Título
Escultura em barro

 

Sem Título
Escultura em barro

Mandala Carranca
Escultura em barro

 

 

 

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Tinha que acontecer (Cabeça de bandeirante)
Fotografia de Andrea Rego para obra exposta no centro cultural Usina de Arte (PE)

 

 

 


Contraplano (Counterplan)

 

 

 

 

Céus e terras
Recortes, colagens de fotografia e folha de ouro

 

 

 

 

Cabeça_Transe
Óleo sobre madeira

 

 

 

 

 

Ikebana XVIII
Tiras de sandália em bloco de concreto

 

 

Caquinhos – série Casa 15
Concreto e cerâmica

 

 

 

 

Seu Cláudio Pedreiro
Acrílica sobre metal

 

 

 

 

Sem título
Placas; Pintura em papelão

 

 

 

 

 

Poesia Marginal Indígena
Cidade Maravilhosa pra quem? Rio 456 anos

 

 

Sobrevivendo no inferno
Parte 1 – contexto social

 

Roteiro de leitura-caderno do curador.
Alan Adi

Primeiramente sugiro: ouçam o Quinteto Violado (PE).

O desenho de Denilson Baniwa (AM) aponta o início de nosso enredo: as águas guardam mais do que aquilo que enxergamos em suas margens. A superfície molhada de rios, mares e igarapés é a pele também dos povos das florestas. Séculos depois, as paisagens que as águas beijavam viraram retratos de um lugar mítico. Caymmi (BA) em suas canções inventou um país no qual a praia nascia e morria em si, sem encontrar com qualquer outra faixa de mundo que não fosse areia e água- foi seu amigo Jorge Amado (BA) que tratou de pôr pedras nos caminhos, e os meninos abandonados ocuparam as margens das ladeiras de Salvador. O Estado Novo não suportou ouvir verdades e incendiou quase dois mil exemplares de ‘Capitães de Areia’ nas margens da Baía de Todos os Santos.

Esse mesmo estado brasileiro que crescia sem olhar para o povo do mar fez com que pescadores saíssem a bordo de uma jangada de Fortaleza para o Rio de Janeiro (então capital federal) para reivindicar diretamente ao presidente melhorias para a profissão. B Negão (RJ) canta uma canção praieira de Caymmi e nos diz que, apesar de todo o dia turbulento do trabalho, quem foi ‘iria chegar’. Cheguei.

Déba Tacana (RO) arranha a argila e risca a seco os caminhos molhados dos rios, ganhando esquinas, rompendo bordas, enquanto Túlio Pinto (DF) nos mostra que as margens e as fronteiras são frágeis como um vidro prestes a seguir o mesmo caminho de quem um dia quis ser uma coisa só. Água e mata, duas correntes irmãs dos encantados.

Caminho de gente-sertão-adentro. Boiadeiros levavam os bichos que não eram dali para outro canto e parando-andando-parando cidades cresceram no percurso. A pintura de Rodrigo Bivar (DF) mostra o bicho solenemente mirando alguma curiosidade, enquanto nós, ainda mais curiosos, ficamos a pensar o que um bicho poderia estar pensando. O boi, de tanto andar pra lá e pra cá, virou peça de folguedo, bicho de terra que guarda o encanto das águas e celebrado na Amazônia e em todo o Nordeste brasileiro.

Ana das Carrancas (PE) foi a matriarca de uma família que continua seu legado, produzindo o objeto que lhe conferiu sobrenome (corpo meio gente-meio animal de proteção à má sorte, sobretudo nas viagens marítimas), moldando-as no barro dos leitos dos rios, atividade que Angela Lima (PE) segue.

Flávio Cerqueira (SP) faz o que a história da história precisa se permitir. Um possível monumento à queda daqueles que colaboraram para o avanço das agressões aos povos originários, desvinculando o mesmo povo da sua natureza, fazendo quase boiar o rosto do cruel nas margens que ele feriu. A figura do bandeirante e seu falso heroísmo talvez tenha como seu principal alvo o Monumento às Bandeiras, sobre o qual Pedro França (RJ) divide conosco seu sábio pensamento sobre o que fazer com algo que nunca deveria ser considerado motivo para homenagem.

Das margens do Ipiranga e da independência que custa a chegar, Miriam Bratfisch Santiago (SP) apresenta margens que acumulam céus e alinham terras cobertas de ouro; o minério cobiçado: fábrica de margens. A cabeça de Efrain Almeida (RJ) olha para o alto buscando outras margens, em uma desalenta oração que desvia nosso olhar para o chão que pisamos, pois vezes parece ser o céu o que nos resta de azul.

Colorida ilusão. O cinza da cidade de concreto põe de volta nossos pés no chão, como nos confessa o trabalho de Alexandre da Cunha (RJ), e de cacos faremos agora nossas moradas longe das casas de nossos avós, mas com alguma cor daqueles quintais, salas e cozinhas, como ouvimos no sussurro do trabalho de Ana Hortides (RJ).

Agora as ruas são beiras da terceira margem do rio, mas por lá não mais nos farão invisibilizados. Guilherme Kid (RJ) empunha a colher de pedreiro da mesma forma que usa o pincel para reescrever os nomes dos heróis que passaram por aqui e que dizem a rota de nossa caminhada, para onde ir e para onde nunca mais voltar, enquanto Kandu Puri (RJ) avisa do alto de um litoral de lajes afinal o que ainda somos; e estamos o ouvindo assim como ouvimos Chavoso da USP (SP), explicando já com a sabedoria ancestral dos professores que todos nós somos sobreviventes.

Agradeço demais a todas e todos artistas que gentilmente colaboraram com essa história contada em exposição. Se ainda hoje marginalizados, que possamos olhar de onde estamos alguma margem de um bonito país.

Sem esquecer e repetindo: ouçam o Quinteto Violado.

Alan Adi.
Curador da exposição “Brasil: a margem; litorais, sertões e capitais”. Maio de 2021.


Coordenação de Artes  – Pedro Gradella
Gerência Artes Visuais – Suane Queiroz
Curadoria – Alan Adi
Produção  – Aline dos Santos e Gisela Chinelli
Educativo – Carla Fernandes
Webdesign – Maxini Matos

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