“A pequena porta, escurecida pelo fumo, que havia ao fim da escada estava aberta. Uma lamparina iluminava um quarto paupérrimo, dos seus dez passos de largura (…)”
extraído de ‘Crime e Castigo’, de 1866
“Os senhores vão perguntar: tinha eu a firme esperança de que me salvaria? Vou lhes responder como perante a Deus: não tinha nenhuma esperança, a não ser talvez uma chance em cem.”
extraído de ‘A Dócil’, de 1876
“À hora marcada fui à farmácia buscar o remédio, e ao mesmo tempo a uma casa de pasto conhecida, onde costumava comer e onde me fiavam. Dessa vez, quando saí de casa levei comigo uma tigela e pedi na casa de pasto uma porção de caldo de galinha para Helena. Mas ela não queria comer e tive de deixar o caldo ao lume, no fogão. Depois de lhe dar o remédio, pus-me a trabalhar. Supunha que estaria adormecida, mas ao dirigir involuntariamente a vista para ela, reparei que se soerguera e olhava com muita atenção para me ver escrever. Fingi que não percebia (…)”.
extraído de ‘Humilhados e Ofendidos’, de 1861
“Dizem que aqueles que estão nas alturas são atraídos por si mesmos para baixo, para o abismo (…)”
extraído de ‘A Dócil’, de 1876
“Em primeiro lugar, o estranho hóspede nunca pedia nada. Ia sempre direto ao canto do fogão de aquecimento e aí se sentava. Se esse lugar se encontrava já ocupado, depois de permanecer algum tempo a contemplar, numa irresolução perplexa aquele que se apoderara do seu posto, o velho, como que inibido, encaminhava-se para outro canto junto da janela. Escolhia uma cadeira, sentava-se lentamente, tirava o chapéu, colocava-o no chão, ao seu lado, punha o bordão perto do chapéu, recostando-se na cadeira, quedava-se imóvel durante umas três ou quatro horas. Nunca pegava num jornal, proferia uma palavra ou fazia qualquer rumor; limitava-se a sentar-se e assim se deixava ficar, olhando para o vazio com os olhos muito abertos; porém, com tal fixidez e tanta ausência de vida que poderia apostar-se como ele nada via nem tão-pouco ouvia de tudo quanto o rodeava. O cão, depois de dar duas ou três voltas sem sair do mesmo sítio, acabava por deitar-se tristemente a seus pés; afundava o focinho entre as patas, respirava profundamente e, estendendo-se a todo o comprimento sobre o chão, ficava assim imóvel toda a noite, como se estivesse morto (…)”.
extraído de ‘Humilhados e Ofendidos’, de 1861
“E você mesmo, por que veio a nossa casa? Veio pregar moral?”.
“Eu precisava então ter poder, precisava de um jogo, precisava conseguir as suas lágrimas, a sua humilhação, a sua histeria. Eis do que eu precisava então! Mas eu próprio não suportei isto, porque sou um crápula; assustei-me e, o diabo sabe para quê, dei de bobo o meu endereço a você (…)”.
extraído de ‘Memória do subsolo’, de 1864
“E eis que me metem na terra. Todos vão embora, estou sozinho, totalmente sozinho”.
extraído de ‘O sonho de um homem ridículo’, de 1877
Fotografias Leonardo Guelman
Curadoria Alan Adi
A partir de um conjunto de fotografias, esse ensaio narrativo visual constrói uma conversa com um dos elementos mais radiosos na obra de Dostoiévski: o solo. Extraídas de momentos diferentes, as imagens são registros de uma pesquisa realizada no sertão do Brasil por Leonardo Guelman.
Não se tratando de paisagens que rapidamente associaríamos à Rússia dos tempos de Dostoiévski, essas imagens deslocam as referências que inicialmente chegariam até nós ao lermos o autor russo.
Nesse ensaio visual, percebemos o quanto a natureza árida que se apresenta nas imagens acaba se aproximando de características reveladas nos ambientes retratados por Dostoiévski, bem como enxergamos que as relações de poder que se fizeram na tentativa de domar essa mesma natureza modelaram as crenças dos sujeitos que lidam diariamente com algum tipo de enfrentamento.
Se a natureza é uma dádiva, por que muitas vezes julgamos o chão seco como vilão? E o frio que mata na outra ponta do mapa é mesmo o principal culpado? Paramos, pensamos e sabemos as respostas e, assim, essas mesmas conclusões nos indicam que o homem é seu próprio carcará.
Ao nos depararmos com uma imagem sendo essa um registro de alguma paisagem, a realocamos em um contexto próximo de nossas experiências. Assim, a interpretação de uma imagem advém de uma equação que tem como seus elementos aquilo que é entregue em exposição e aquilo que guardamos na memória. Já o resultado dessa equação é um múltiplo que sempre será passível de novas interpretações.
As fotografias e recortes de textos aqui presentes geram um cruzamento de paisagens que acaba resultando em um corpo que avalia até que ponto conseguimos fabricar novas interpretações para imagens e palavras que estão historicamente associadas à miséria. Quando Dostoiévski publicou seu primeiro romance em 1846 e deu a ele o título ‘Gente Pobre’, acabou traçando e demarcando ali boa parte do olhar que estenderia para as suas demais obras.
Não devemos ser reféns em atribuir uma beleza à miséria, mas quando Dostoiévski assume em texto falar de situações desse flagelo, ele está falando ‘com aqueles’ e não ‘por aqueles’, e por isso as imagens que fabulamos a partir da leitura tornam-se sublimes e capazes de renovar na gente nosso espírito ético.
A vaidade inexistente em sua arte o aproxima de um monge crítico capaz de ensinar o quanto as questões aparentadas na paisagem afetam o íntimo e as relações dos sujeitos menos favorecidos economicamente. Há fé em sua escrita tanto quanto há crítica; duas substâncias que comumente distanciamos e atribuímos duas moradas distintas. Faz-se assim o céu da fé, crenças, santos e afins, porém esses são semeados não lá em cima, mas aqui, em pleno chão onde a crítica fez morada.
No céu, os anjos que acreditamos olhar por nós lá do alto tentam nos ouvir, loucos, sem rumo mediante as escolhas dos soberbos, mais loucos que nós; esses ferozes que tentam dizer em qual chão podemos morrer. Será que os invisíveis ainda nos escutam?
Não tem jeito: onde ora o chão, ora o capitão, sempre sobrará a oração (um restinho de esperança de qualquer sobrevivente).
Alan Adi
Curador de Artes Visuais